quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A consulta...

... de minha vida, foi uma a pouquíssimo tempo.
Eu já perto do fim de minha carreira de anos dedicados aos cuidados de enfermos,
recebo em meu já notório consultório, localizado em um bairro nobre de minha cidade,
um paciente já com suas 80 primaveras ou quem sabe 90 invernos.
De face cansada, olhar sereno, como que já conhecidíssimo de todas as verdades do mundo e da alma humana,
entra em minha sala de exames logo após minha atendente informar que ele seria o último paciente do dia.
Ele entra caminhando devagar, como que tivesse todo tempo do mundo, eu em minha cadeira pacientemente espero e após um "bom dia" protocolar, pergunto a ele o que o aflige.
Ele sem delongas e sem cerimônias me rebate a pergunta com um: "a mim nada e ao senhor?".
Não entendo a pergunta e a ignoro, deixando-a passar como todas aquelas que poderiam atrapalhar o rumo da prosa que sempre leva a um emplastro, uma medicação de farmácia ou a recomendações diversas quanto aos hábitos de vida...
Então resolvo mudar o verbo e o pergunto : "o que o trás aqui senhor?", ele me responde de pronto: "minha vontade de me consultar, minhas pernas e o ônibus.", mais uma vez injuriado mas ainda paciente pergunto a ele por que motivo gostaria de se consultar comigo e ele me responde: "Para cobrar uma dívida, para pegar uma receita e para lhe dar os parabéns.".
Curioso e meio que assombrado pela necessidade de sempre saber todas as verdades o questiono primeiramente por que motivos eu merecia os parabéns e ele me responde: "Pelo seu dia, amanhã é seu dia e não consegui marcar consulta para amanhã!", recordo então que hoje é véspera do dia do médico, e como de praxe, costumo celebrar com meus colegas esse dia ao invés de abrir o consultório.
Bem agradeço então a lembrança e pergunto então o que mais o fez marcar a consulta, ele me responde: "...preciso também de uma receita, o remédio que tomo para minha artrite acabou e não consigo comprar mais com a receita velha que tenho...", pergunto a ele que remédio toma e o interrogo um pouco sobre sua patologia, ao fim, olho para ele e digo: "realmente o senhor é um artrite...", antes mesmo que terminasse a frase ele me olha e diz: "não doutor, eu sou o Ernesto, atrite é o que me faz mal, mas meu nome é Ernesto...", peço desculpas e não tento explicar o péssimo costume que nós médico temos de referenciar nossos pacientes por suas patologia. Bem mas seguindo a rotina, prescrevo o mesmo remédio que o senhor tomava, entrego sua receita e quando estou já me levantando para o acompanhar até a porta do consultório, ele se recusando a se levantar me pergunta do valor da consulta, eu digo a ele que isso ele trataria com minha secretária, ele me olha e diz: "mas me consultei com o senhor e não com ela...", digo a ele que realmente, mas que quem trata da parte financeira é ela, ele me responde que se não for a mim ele não quitará a consulta.
Então com muita paciência digo a ele o preço da consulta e recebo o valor em dinheiro de sua mão, que parece ser uma mão cansada e calejada, pergunto então já algo impaciente se há algo mais que ele gostaria de tratar...
ele me responde, agora só me falta cobrar a dívida que me tens... curioso que sou não me finjo de rogado e o  pergunto o que lhe devo, o senhor Ernesto sereno me responde que era uma conta antiga e não acreditava que eu lembrasse... eu que já estava a segurar a maçaneta da porta, retorno a junto do senhor Ernesto e pergunto a ele que dívida era essa... ele finalmente tirando os óculos me responde: "a de ser paciente..." e continua:
"Paciente em esperar por horas a porta do seu consultório para ser atendido, paciente por aguentar sua inquietude para que a consulta termine logo, paciente por me contentar com uma receita, paciente por esperar dias pela consulta marcada e paciente por ser paciente, pois sem mim você não teria razão pela qual trabalhar, pois quando tratas de doenças é na realidade a mim que estás tratando, e não as doenças que aprendeste em teus livros..."
"além do mais, paciente por ter de esperar mais de 50 anos, para me consultar com o moleque mais danado da rua, que tantas vezes roubou a paciência deste idoso paciente e paciente idoso com suas brincadeiras de bola, que teimavam quebrar minha janela, e pelos muitos sorvetes que paguei para o senhor e seus amigos de pelota..."
"paciente pois deixaste na rua em que moravas com teus pais, muitas saudades, e paciente pois o tempo não apagou da memória a saudade que sentia daquele garoto a quem contava minhas aventuras de quando mais moço e que sempre resmungava quando eu dizia que ele deveria ir para casa estudar se um dia realmente quisesse ser um médico famoso que tanto sonhava ser..."
"paciente pois aquele menino que foi para mim o mais próximo que tive de um neto, ou de um filho, nunca me deixou de verdade pois sempre o carregarei aqui no coração, da mesma forma: um moleque, frágil e inocente, que esperava curar todos os males  da humanidade sem que esta tivesse que dar nada em troca..."
Com os olhos mareados, encaro o senhor Ernesto, ou como o chamava, "seu Teto", com alguma vergonha e pergunto para ele o que deveria fazer para voltar a ser aquele menino tanto gostava de ser e que parece cada vez mais distante... e ele me responde que eu continuo a ser aquele mesmo menino, que apenas me esforço todos os dias para não deixar transparecer, atuando com máscaras e fantasias que escondem o que mais se deve ter quando se abraça a vida: amor.